Ao declarar guerra à “ideologia de gênero”, Bolsonaro elege inimigo que não existe
“É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”. A frase declarada na semana passada por Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, tem sido criticada por defender e reforçar estereótipos. Como resposta, Damares afirmou que fez uma “metáfora contra a ideologia de gênero”. Mas, o que é a “ideologia de gênero”, tão criticada pelo novo governo?
No Brasil, a discussão sobre o tema veio à tona em 2014, a partir da tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional. Durante a votação, apoiada por outras forças conservadoras, a bancada evangélica conseguiu retirar as referências a gênero e sexualidade do texto que determina as diretrizes e metas da educação no Brasil.
Em escala mundial, a perseguição a uma suposta ideologia de gênero remete ao século passado. Daniela Rezende, pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Viçosa (UFV), explica que o combate à chamada ideologia de gênero, protagonizado pela ala mais conservadora da Igreja Católica, surge no final da década de 1990 em reação à uma série de discussões sobre o direito das mulheres iniciadas pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Em 1994, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, conhecida como Conferência do Cairo, discutiu os direitos reprodutivos das mulheres e estabeleceu resoluções relacionadas a políticas populacionais. No ano seguinte, a Conferência de Pequim, que contou com a participação de 189 governos e centenas de organizações não governamentais, debateu o avanço e o empoderamento da mulher em relação aos direitos humanos, a violência contra a mulher e a criança do sexo feminino, entre outros assuntos.
“A Conferência de Pequim, por exemplo, é a primeira conferência da ONU que traz a palavra ‘gênero’. Já a Conferência do Cairo é um marco no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos. No bojo dessas conferências, a Igreja Católica se organiza e começa a produzir uma série de documentos em reação aos debates, aos direitos e aos estudos relacionados a gênero e sexualidade”, explica Rezende. Em razão da Conferência de Pequim, o papa João Paulo II chegou a escrever uma carta direcionada às mulheres, na qual enalteceu o papel da mulher descrito pela bíblia e criticou uma cultura que estaria promovendo a exploração sistemática da sexualidade.
A cientista política detalha que a base do movimento “anti-gênero” é a defesa da chamada “família natural”, expressão bíblica que determina que a instituição familiar é composta por um homem, por uma mulher e por seus filhos. A critica contra as discussões relacionadas a identidade de gênero também são centrais nas primeiras movimentações da Igreja Católica.
Vanguarda conservadora
Em 2004, Joseph Aloisius Ratzinger, que viria a ser papa emérito no ano seguinte e conhecido mundialmente como Bento XVI, escreveu um texto em nome do Vaticano no qual condenou tal “ideologia de gênero” por considerar negativo que o indivíduo tivesse o direito de escolher seu gênero sem levar em conta o sexo biológico. De acordo com a Igreja, o feminismo seria responsável por colocar as mulheres como antagonistas dos homens e promover uma rivalidade radical entre os sexos, o que causaria uma “confusão prejudicial que tem sua implicação mais imediata e nefasta na estrutura da família”.
Daniela Rezende acredita que, justamente para atender a preceitos religiosos, o termo “ideologia de gênero” foi criado, e ainda é utilizado, com o objetivo de deslegitimar estudos e mobilizações fundamentais para a garantia dos direitos e da liberdade das mulheres. Ou seja, não existe uma “ideologia de gênero”.
“O que é chamado de ideologia de gênero é um nome conservador, criado em reação aos estudos de gêneros, que não são ideologias. São teorias baseadas em dados e pesquisas científicas. Chamar as teorias e estudos de gênero de ideologia de gênero, na verdade, é uma reação aos estudos de gênero e ao que os estudos de gênero vêm questionar e mostrar a partir de pesquisas científicas”, diz a pesquisadora da UFV. “Chamar os estudos de gênero de ideologia é uma forma de desqualificá-los como estudos científicos. A ideologia remete a uma parcialidade, a uma dimensão política. O termo ideologia faz parte dessa disputa”, acrescenta.
Segundo a antropóloga Heloísa Buarque, professora da Universidade de São Paulo (USP), estudos comparativos da área mostram que não é possível determinar o que é ser homem e mulher porque há muita diferenciação histórica na compreensão do corpo, do sexo biológico e de gênero dos indivíduos.
“O que é considerado masculino e feminino varia muito de uma sociedade para outra e varia muito de uma época para outra. Ser mulher no século 19 é diferente do ser mulher no século 20. Esse ataque a uma chamada ideologia de gênero é um ataque, na verdade, contra todas as lutas pelos direitos das mulheres”, avalia Buarque, que aponta contradições no movimento “anti-gênero” impulsionado pelo governo Bolsonaro: “A ideia de que as famílias só são famílias heterossexuais é uma ideologia. É um valor, um conjunto de ideias.”
Ela complementa que defender uma família formada pelo homem, pela mulher e pelo filho como tradicional é um argumento infundado. “Se olharmos a história do Brasil, sempre houve variados arranjos familiares. Sempre houve famílias chefiadas por mulheres. Sempre houve famílias mais extensas morando junto. Avós, tios, primos, morando em uma mesma casa. Isso também é família, é um arranjo familiar”, diz a antropóloga.
Populações vulneráveis
As pesquisadoras concordam na análise de que as vítimas da “guerra à ideologia de gênero” são populações que já se encontram em situação de vulnerabilidade, como as mulheres e a população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros). “O termo ideologia de gênero é um ataque contra os direitos das mulheres e também um ataque contra os direitos das pessoas LGBT de formar uma família. Uma família formada por dois pais ou duas mães também é família”, ressalta Buarque.
Daniela Rezende argumenta que os estudos de gênero incomodam por questionar categorias fixas e polarizadas, impostas na convivência social. A integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da UFV relembra a fala de Damares.
“Quando a ministra fala que menino usa azul e menina usa rosa, ela está tentando fixar um conteúdo, como se as cores tivessem gênero. Como se isso não fosse historicamente estabelecido, como se não fosse uma construção social. As cores não são originalmente associadas a nenhum gênero ou a nenhum sexo. Assim como a fragilidade não está naturalmente associada ao feminino e a força e agressividade não estão naturalmente associadas ao masculino”.
Rezende defende aqueles que estão na mira desse discurso. “As populações trans e travestis são a explicitação do descolamento entre sexo e gênero, um corpo biológico não resume a vida de uma pessoa, nem sua identidade de gênero e nem sua orientação sexual. Esse movimento contra a ‘ideologia de gênero’ tem alguns alvos preferenciais e a garantia de direito das populações trans e travestis estão fortemente ameaçadas”.
Violência dentro de casa
Heloísa Buarque destaca ainda outra contradição: a família tradicional, heterossexual, exposta como modelo impecável do movimento “anti-gênero”, é a principal responsável pela violência contra as mulheres e contra as crianças.
O Atlas da Violência de 2018 revelou que no ano de 2016, mais de 13 mil casos de violência foram registrados como ocorridos dentro da casa da pessoa violentada, geralmente por pessoas próximas como maridos ou namorados. Em relação a violência sexual, o cenário se repete: quando vítima e agressor se conhecem, 78,6% dos crimes acontecem na casa das mulheres.
Produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Atlas aponta que 50,9% dos casos registrados de estupro em 2016 foram cometidos contra menores de 13 anos de idade. Conhecidos e amigos da família são responsáveis por 30% desses crimes. Pais e padrastos, com 12% cada, também estão na lista dos responsáveis pelos crimes.
“Precisamos discutir gênero e sexualidade na escola porque quando falamos sobre isso é quando uma criança descobre que está sendo abusada dentro de casa. Falar de sexualidade na escola é falar que ela tem o direito de não ser tocada, a não ser abusada”, endossa Buarque, crítica ao projeto Escola Sem Partido.
“Falar de gênero na escola é ensinar os meninos a não serem violentos. Quando há um padrão muito rígido de masculinidade, como por exemplo, menino só usa azul e menino não pode chorar, o que fazemos é ensiná-los a serem violentos. Quando falamos que ele não chora, não se permite que ele extrapole a sua frustração, sua tristeza, por meio do choro. E acabamos, indiretamente, extrapolando sua insatisfação através da violência. Ou seja, o padrão de gênero tradicional produz violência.”
Apesar da articulação conservadora e religiosa contra o tema, uma pesquisa Datafolha divulgada nesta segunda-feira (7), mostra que 54% dos brasileiros acredita que é necessário falar sobre sexualidade na sala de aula.
Com base em declarações recentes do novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmando que iria supervisionar projetos e bolsas do CNPq e Capes, instituições que financiam pesquisas, a antropóloga teme o crescimento da perseguição aos estudos de gênero no país, algo que já se concretizou em outros países: em setembro do ano passado, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, excluiu os estudos de gênero da lista de diplomas oficiais do país.
“É uma vergonha, uma ditadura o que acontece na Hungria. Não se respeita os direitos, a autonomia da Universidade. Se ele [Vélez Rodríguez] entrar com um critério ideológico, configura uma atitude criminosa dentro do que é o Estado de direito, uma República. Se eles forem desmontar a pesquisa a partir do critério ideológico, isso será um atraso para o país. Será um tiro no pé. Eles estarão fazendo algo catastrófico para nossa nação”, diz Buarque, exaltando o sistema de pesquisa e ensino brasileiro.
Protagonismo evangélico
“O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”, disse Damares ao assumir a pasta de Direitos Humanos. Pastora evangélica, a nova ministra representa uma forte articulação do movimento evangélico pró-Bolsonaro, que também ergue a bandeira contra a “ideologia de gênero”.
Apesar de ter suas origens nos setores mais extremistas da Igreja Católica, essa guerra é protagonizada atualmente por parcelas do setor evangélico, muito presente nas instituições políticas do país. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), feito com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a bancada evangélica terá 91 congressistas em 2019.
No entanto, a visão contra os estudos de gênero não é hegemônica entre os evangélicos. “O termo ideologia de gênero é um termo de quem não entende ou não quer entender o que realmente se quer pautar quando se fala o termo gênero. O que se quer é respeitar a liberdade, a identidade que as pessoas têm, e produzir um convívio de não-violência”, afirma Henrique Vieira, pastor da Igreja Batista do Caminho, do Rio de Janeiro.
“Ver segmentos evangélicos em nome de um dogma, de uma doutrina, estimulando no Brasil uma cultura de violência, de preconceito, de discriminação, é algo que, como pastor e discípulo de Jesus, lamento bastante e me entristece. É fruto de um fundamentalismo religioso muito mais apegado a uma moral vazia de sentido do que à dignidade humana e à vida das pessoas. É um tipo de experiência religiosa que nada tem a ver com a essência bíblica e com os ensinamentos de Jesus”, reforça Vieira.
Brasil de Fato